Segundo economistas, alta do endividamento e do comprometimento de renda ainda não deve piorar situação financeira das famílias, mas mercado de trabalho precisa se recuperar para que o aumento das dívidas continue controlado e não gere inadimplência
Depois de longo período de desalavancagem, as famílias brasileiras voltaram a se endividar. Dados do Banco Central mostram que a proporção entre o valor das dívidas com o Sistema Financeiro Nacional e a renda efetiva acumulada em 12 meses atingiu 44,9% em novembro, 2,3 pontos acima do observado em igual período de 2018. Ante o mês anterior, o índice está em alta há 11 meses seguidos. Excluindo o financiamento imobiliário, o endividamento é bem menor, mas também está em trajetória crescente: subiu de 24,1% para 26,3% em um ano.
O comprometimento mensal da renda com dívidas – que, segundo economistas, é mais importante para determinar o poder de compra das famílias – também está em alta, mas em ritmo mais modesto. O dado avançou um ponto na comparação anual, para 20,9%. Sem o crédito para compra de imóveis, o aumento foi de 1,2 ponto, para 18,6% da renda mensal.
Série calculada pela Tendências Consultoria usando a massa de renda habitual, e não a efetiva – e por isso, com dados um mês à frente -, aponta na mesma direção. Em dezembro, 28,6% da renda mensal das famílias estava comprometida com dívidas, ante 27% há um ano. Já o endividamento em relação à renda acumulada em 12 meses aumentou três pontos em igual ordem, para 54,7%. Os dois percentuais são superiores ao estimado pela autoridade monetária porque incluem o saldo de dívidas sem juros no cartão de crédito, não considerado no critério do BC.
Também no último mês de 2019, 65,6% das famílias tinham algum empréstimo e/ou compra a prazo, segundo pesquisa da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). Esse é o nível recorde do levantamento, que começou em janeiro de 2010.
Para especialistas, a queda dos juros e o aumento da confiança dos consumidores, após anos com a demanda por bens mais caros reprimida, elevaram a procura por crédito. No momento atual, esse movimento não desperta preocupação, devido à expectativa de que o mercado de trabalho formal gere mais empregos e renda este ano. Por outro lado, a trajetória ainda fraca dos salários acenderia um sinal de alerta para a situação financeira das famílias, caso persista. Por ora, a taxa de inadimplência da pessoa física no crédito com recursos livres segue controlada, em 5% até dezembro.
Enquanto as concessões para famílias com recursos livres, em que as taxas são pactuadas livremente entre bancos e clientes, subiram 14,7% entre 2018 e 2019, a massa salarial, que combina a variação do emprego e da renda real, cresceu 2,5% em igual comparação. Em relatório recente, Tony Volpon, economista-chefe para o Brasil do UBS, destaca essa disparidade da economia brasileira, uma vez que é normal que os dois indicadores evoluam em ritmo mais próximo.
O crescimento das novas concessões já superou o ritmo observado em 2013, de cerca de 12%, nota Volpon, enquanto a massa de renda ainda está bastante aquém da alta de 10% verificada no ano anterior à crise. “O desempenho do crédito é surpreendente”, diz o economista, que relaciona o aumento do endividamento à queda dos juros e também a uma mudança de composição dos financiamentos, para modalidades mais baratas.
Por isso, mesmo com o crédito se expandindo a uma velocidade de dois dígitos, o serviço da dívida não subiu em igual proporção nem o comprometimento, ressalta Volpon. “Olhando o crédito em relação à renda, poderíamos achar que há um problema, mas o percentual de renda comprometida não está perto do pico”, afirmou. Para o UBS, na medida em que o mercado de trabalho formal se recuperar, o crescimento da massa salarial deve acelerar, o que reduz o risco de alta desenfreada do endividamento e da inadimplência.
Nas estimativas da Tendências, a massa salarial vai crescer 2,7% em 2020, taxa que não coloca o orçamento familiar sob estresse, afirma a economista Isabela Tavares. Com melhora da renda, o maior endividamento não é prejudicial, diz, porque o comprometimento mensal permaneceria abaixo de 30%, devido ao menor custo das dívidas e, também, ao alongamento dos prazos.
“Durante a crise, houve aumento do uso do rotativo do cartão de crédito e do cheque especial, linhas que têm juros mais altos”, diz Isabela. Agora, as modalidades mais contratadas são o crédito pessoal e o financiamento de carro, aponta ela, mais baratas e com prazos maiores e que, por isso, não consomem tanto o orçamento mensal.
Segundo a CNC, entre os consumidores endividados, 9,9% financiaram um veículo e 8,9%, um imóvel, fatia acima daqueles que estão no cheque especial (6,7%). A principal dívida ainda é cartão de crédito (79,8%).
É normal que, depois de um longo período de moderação, as dívidas tenham voltado a subir na esteira da recuperação do consumo, aponta Marianne Hanson, economista da CNC. “As famílias adiaram compras, como a troca de carro e eletrodomésticos. A partir do momento em que houve retomada da confiança, estão contratando mais crédito”, disse, e a redução dos juros seria um incentivo a mais para a decisão de voltar a se endividar.
A demanda dos consumidores por crédito cresceu 12,4% em 2019 de acordo com medição da Serasa Experian, puxada principalmente por pessoas de menor renda. Na faixa que recebe de R$ 500 a R$ 1.000 por mês, a alta foi de 14%. Para Luiz Rabi, economista da Serasa, o crédito deve crescer novamente na casa de dois dígitos neste ano, mas o Brasil não deve enfrentar um problema de superendividamento e inadimplência, como em 2011.
Hoje, o comprometimento de renda excluindo financiamento imobiliário – medida que Rabi prefere analisar – está em 18,6%, nível mais confortável do que os 21,5% observados há nove anos. “O que pode gerar algum problema no futuro é o aumento do comprometimento da renda, mas a redução dos juros e o aumento dos prazos de parcelamento podem compensar isso.”
O número do BC aponta o comprometimento médio mensal com base nas dívidas com o SFN, enquanto a pesquisa da CNC pergunta aos consumidores qual a parcela de rendimentos destinada ao pagamento desses dispêndios. Nessa análise, um dado chama atenção, pondera Marianne: 20% das famílias com alguma dívida afirmam possuir mais da metade dos rendimentos comprometido. A considerável parcela de famílias nessa condição impõe um limite para o crescimento do crédito, mas não impede que a retomada do consumo continue, avalia ela.
Fonte: Valor Econômico